sábado, 15 de dezembro de 2007

Dentro de Adélia


Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa.
Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra que, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia.
.
.
.
Hoje estou velha como quero ficar.
Sem nenhuma estridência.
Dei os desejos todos por memória
e rasa xícara de chá.
.
.
.
Velhice
é um modo de sentir frio que me assalta
e uma certa acidez.
O modo de um cachorro enrodilhar-se
quando a casa se apaga e as pessoas se deitam.
Divido o dia em três partes:
a primeira pra olhar retratos,
a segunda pra olhar espelhos,
a última e maior delas, pra chorar.
Eu, que fui loura e lírica,
não estou pictural.
Peço a Deus,
em socorro de minha fraqueza,
abrevie esses dias e me conceda um rosto
de velha mãe cansada, de avó boa,
não me importo. Aspiro mesmo
com impaciência e dor.
Porque sempre há quem diga
no meio da minha alegria:
'põe o agasalho'
'tens coragem?'
'por que não vais de óculos?'
Mesmo rosa sequíssima e seu perfume de pó,
quero o que desse modo é doce,
o que de mim diga: assim é.
Pra eu parar de temer e posar pra um retrato,
ganhar uma poesia em pergaminho
.
.
.
.
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
.
.
.

O livro ainda é o mesmo: Poesia Reunida, coletânea de livros de Adélia Prado. Todos aqui são de O modo poético. Daí os temas parecidos, ligados entre si. E o modo feminino e simples de ver a vida. Sinto-me agora dentro desse mundo. O mundo de Adélia. Triste, alegre, realista, mas sobretudo triste. Já disse nesse blog, é a dor a matéria prima que inspira os grandes poetas. É a dor.
Neste mesmo livro Adélia tem poemas para a cor roxa, para a amarela e a laranja. Um colorido que tentei reproduzir aqui.
A 1ª poesia é Poema esquisito, pg 21.
A 2ª é Trégua, pg 30.
E a 3ª é Páscoa, pg 29.
E o último é Exausto, pg 27.

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