sexta-feira, 14 de setembro de 2007

José Luís Peixoto

Há anos que guardo ovelhas e nunca nenhuma me olhou de frente. A minha mulher olhou-me um dia de frente. Nesse dia de tarde, há pouco mais de um ano, fizemos o nosso filho e achei que era assim que todas as pessoas encontravam alguém. Chegava uma pessoa vinda vinda de lado nenhum, sem motivo para chegar ou com um motivo que não se entendia, e oferecia-se a outra pessoa, e essa pessoa achava tudo isso natural, porque era assim que todas as pessoas se entregavam a alguém, e era nesse momento tão grande que ambos se entregavam para a vida, sem olhar para trás ou pensar um pouco, ambos se entregavam um ao outro para a vida, porque, a partir desse momento grande, toda a vida seria assim natural, inexplicável e grandiosa. Faltou-me saber que o que é num instante o mundo, não é o mundo sempre. Antes de me casar, os homens na rua chamavam-lhe galdéria. Então, como está a galdéria? Chamavam-lhe puta. Então, como é que está a puta? Depois de me casar, deixaram de lhe chamar galdéria ou puta. Então, como é que está a tua mulher? E pensavam galdéria, puta. Casámo-nos e a minha mulher nunca mais saiu do monte. Não lhe conheço o sorriso e imaginei-o tantas vezes e há tanto tempo que me desenganei de o ver. Não lhe conheço o toque das mãos, talvez suave, talvez áspero, e imaginei-o tantas vezes. Não lhe conheço a alegria, por mais furtiva, por mais breve, e há tanto tempo me desenganei de a ver. Não sei o que nos arrasou. Somos ruínas.(...)


José Luís Peixoto(escritor português prêmio José Saramago); excerto de Livro I, in Nenhum Olhar, pág. 72

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